quinta-feira, 15 de setembro de 2005

Lei Nº 5672/71

       Formara-se atriz, e era também professora. Tinha um coração enorme e os cabelos pintados de vermelho.
       Ligou para as amigas:
-Vou com vocês.
-Vai?!
       Foi.
       Um luxo que, às vezes, seu curto salário de fundação educacional e sua filha pequena permitiam: viajar com as amigas.
        Carla era sempre muito querida em qualquer programa. Era muito animada, podia ser menina e mulher como por mágica. 
 Chegaram à uma São Paulo chuvosa, deixando pra trás uma Brasília chuvosa. Foram direto para o Bexiga, eram boas de copo.
        Lá pelas tantas, já alta, Carla foi embora. Queria voltar para o hotel e respeitar seu descanso. Foi caminhando pois gostava disso, aceitava seus pensamentos.
       Foi interrompida por um choro embolado. Estava ali, sentada num canto, uma mulher negra, muito magra. Os cabelos, que haviam sido domados por muitas camadas de gel, escapavam, rebeldes, dessas presilhas que a gente vê aos montes nos camelôs.
       Ela chorava bêbada, humilhada. Respondeu, aquela criaturazinha, que acabara de ser expulsa de um daqueles bares finos dali.
        Ela não tinha dinheiro? Sofrera preconceito? Dera algum vexame? Carla não perguntou. Usou sua elegância, vestiu-se em seu blazer, e foi ao tal bar.
       Chamou o gerente, pois sabia que os funcionários pouco ajudariam.
-Pois não, senhora?
-Boa noite! Estava eu em um coquetel com o Ministro Antonio Carlos Jobim, quando minha cliente me ligou alegando que fora expulsa deste recinto sem justa causa!
       O gerente arregalou os olhos. Não imaginaria que aquela senhora bêbada que os seguranças, gentilmente, arrancaram da mesa de um grã-fino, teria condições de pagar por um advogado.
       Para tornar a situação mais verossímil, Carla sacou sua carteirinha do sindicato dos professores e passou rapidamente pelos olhos atônitos do gerente, para mostrar sua suposta identificação e completou:
-Segundo a lei Nº 5672/71 (alguma lei relacionada a educação, que ela lembrava na hora), a minha cliente sofreu preconceito e a penalidade é...
-Não doutora, tenha calma! Aceita um drinque!
-Estou trabalhando! Respondeu, ofendida.
       A senhora humilhada foi recebida pelo gerente, que lhe implorou o perdão, que ela pode dar com uma arrogância nova, gostosa.
       Depois foram tomar uma saideira, para comemorar.  

Nanna Carolina 

sábado, 25 de junho de 2005

Florescer

       É uma menina triste, não coube em suas mãos uma dúzia de flores, então ela caiu entre os humanos. Ela chora, quem sabe suas lágrimas a limpem. Ela brinca, mas já não consegue ser criança...
       Deram-lhe a pedra para pôr no caminho, respiraram seu cabelo de laranja, olharam-na nos fortes olhos perdidos, e ela apenas subiu no seu calendário para espiar através do muro. Mas ainda chora. Olhou de novo para ontem, sorriu de novo entre os porcos, deixou de novo a cabeça pesar sobre o corpo...
Lá vai ela correndo, finge não ver o caminho, sucumbe e cala seus sentimentos. Perde a força, carrega pesos, fica exausta, grita (!) Sua voz é forte e há muito estava encarcerada.
       Ela tirou os sapatos e sentiu a terra e vontade de voar e chamar a chuva. Por alguns instantes, vê-se ela com o corpo deixado num canto., permitindo-se sonhar. O que sonharia, a menina triste? Castelos perfeitos e príncipes encantados? Ou sonharia diferente das meninas felizes?
       Com a voz trêmula, ela canta uma canção e mergulha no próprio ser. Depois de expandir-se ela volta, mas traz consigo uma lança, olha pra todos que esperam (sempre) uma reação. Ela crava a lança no peito
       Espera menina, não faça isso, agora nós te entendemos!!!
       Mas uma serenidade invade seu rosto, e ela dorme, agora com o mesmo sorriso das meninas felizes.

Nanna Carolina